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Projeções

jorge-vitoriaQuase inverno morno de Copa do Mundo.  Morreu mais um menino na Cidade de Deus, vítima da guerra diária que assola há tempos as favelas e periferias. Na marcha dos tempos do dia a dia, a vida se arrasta rapidamente, pavio aceso que cumpre sua missão.  As crianças de outro dia já se tornaram adultos, mas ainda carregam nas ideias e semblantes os restos daquilo que ainda são. A marcha alegre do trânsito nas horas que antecedem os jogos da seleção se assemelha às fúnebres caminhadas em direção contrária às utopias. E teimamos em chamar esses fragmentos mal compostos de realidade. Como o mosaico produzido pelo preguiçoso, as imagens desmentem qualquer possibilidade de imitação do total. Observando e sentindo os estilhaços que se descolam e deslocam, continuamos nosso caminho em direção do futuro que dobra toda esquina, se oculta atrás dos postes, ou é encontrado na morte indigente em um matagal de bairro afastado. A pausa para o café não afasta o ciclo do trabalho que engorda a riqueza de alguém que nunca se conhece. O existir sendo o cumprimento do papel-clichê que se deve desempenhar em nome da coerência e dos bons costumes. Os meninos daquele jeito ganhando uma geral dos PMs ao chegar à orla. A alegria virtual da página de relacionamento falsamente se insinua e acalma com suas mentiras medidas em pixels ou gigabytes. Enquanto isso, aqui, do outro lado, o marido ciumento e bêbado continua matando todo dia a sua mulher a facadas. Sim, a mulher dele, ou seja, a sua mulher. Entre posses e poses, as caras selfie se reproduzem: labirintos formados pela anteposição de dois espelhos. O verdeamarelismo de ocasião não convence, haja geladas e vinhos para reprimir os efeitos de lidar com a lida que nos consome e evapora, pulverizando-nos depois como pequenas partes desse todo mutante. As eleições se aproximam e se apresentam como refilmagem aquele filme velho que tanto se repetiu. Brotou uma flor doida de uma planta desconhecida, nasceu o sobrinho do amigo e a senhora tão forte saiu sem despedida. Alegrias e tristezas nesse redemoinho de estímulos, vai e vem de sempre, azares na roda da fortuna. A poluição de minério aqui, nos pulmões, como testemunha. Empates, vitórias e derrotas que parecem cenas de um teatro de cenários gastos. Mas há o passeio na praia: ironicamente as aves, distantes, passaram de tardezinha formando um “V” que há muito tempo eu não via.

Jorge Nascimento é doutor pela UFRJ, professor do Departamento de Línguas e Letras da Ufes e escreve quinzenalmente neste espaço 

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