Os escravagismos e pós-escravagismos cotidianos sobrevivem e atuam, atestam, a nível exemplar, a continuidade do velho que teima em estar sempre no comando. Apesar da crise, a lógica perversa é simples: quem “panha” café não toma cappuccino, quem cata cacau não come Nutella. Apesar da crise, matam-se rios, caçam-se árabes, traficam-se humanos, prostituem-se crianças, matam-se e roubam-se órgãos que são valorizados nos mercados negros do mundo. Apesar da crise, há fila de espera para comprar carros importados, brasileiros estão bebendo mais vinhos e cervejas artesanais, o consumo geral será de 60 bilhões de dólares no Brasil. Apesar da crise, definha-se em fila de hospital, assassinam-se jovens pobres e negros numa guerra sem fim. Nasceu uma flor nova, da qual eu desconheço o nome, e eu senti e amei sua cor e seu cheiro (apesar da crise).
Os entardeceres andam muito bonitos, mesmo emoldurados pela poluição. Um garotinho com camisa de time de futebol, apesar da crise, me ofereceu um bombom e um sorriso. Pessoas estudam, escrevem poemas, romances, viajam para lê-los e apresentá-los. É… apesar da crise, criam mundos, pretendem emocionar o outro, ensinar uma criança a ler livros e mundos que existem e podem existir, mesmo apesar da crise. Há muitas conversas animadas e sorrisos nos bares e shows. Apesar da crise, mais um barco de migrantes africanos naufragou. Eu não entendo tanta comoção! Até parece que um trem passou por cima de um leão.
Jorge Nascimento é doutor pela UFRJ, professor do Departamento de Línguas e Letras da Ufes e escreve quinzenalmente neste espaço