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O berro e a ferida

A expressão da dor nem sempre é proporcional à sua causa ou ao dano, físico ou moral, que ela, a expressão, denuncia. Somos seres distintos em muitas coisas, mas poucas delas tão marcantes quanto à sensibilidade. Um médico legista enxerga um cadáver em cima de uma mesa de dissecação com olhos e sentimentos distintos da criança que tropeça nele na esquina de sua casa, voltando da escola.

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E o fato morte é exatamente o mesmo para aquele corpo, tenha sido causada por um prosaico infarto ou por uma execução. O exemplo extremo usei para pontuar que o que nos torna especiais como seres humanos é exatamente as diferenças de opinião, de gosto, de valores, de perspectivas, de sonhos e de expressões de sentimentos. Abelhas e pinguins não mergulham em divagações diante de um corpo de um semelhante jazendo na porta de suas colmeias ou colônias.

Caetano Veloso escreveu que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” exatamente porque ninguém mais que nós mesmos podemos dimensionar a intensidade dos que nos faz feliz ou nos magoa, do que nos desperta o amor ou o ódio, aqui sem qualquer proposta de julgamento maniqueísta entre bem e mal, já que acredito, fielmente, que não existe ninguém no mundo, da aurora ao ocaso de sua existência, que não tenha,  pelo menos em seu íntimo, desejado o melhor ou o pior a um ser amado ou a um desafeto.

Digo isso porque cada dia mais me surpreendo com a intensidade dos rótulos e a virulência dos discursos contrários aos que gritam sua dor, aos que exprimem seu descontentamento, aos que exibem sua indignação. Àquelas mulheres que vociferam contra a exploração, violência ou preconceito do qual se sentem elas mesmas ou suas iguais vítimas, pespegam o rótulo de “feminazis”.

Negros, mesmo que de alma, que gritam por um espaço mais digno que seus pais, avós ou trisavós na sociedade, rotulam de crioulos afetados. A desconstrução da opressão não faz sumir o opressor, menos ainda suas ações. Já o exagero na ênfase da dor, se não resolve historicamente sua causa, pelo menos aumenta seu espectro, alerta e ajuda a minorar a repetição mecânica dos atos individuais ou coletivos, volitivos ou não, que a provocam, desencorajando seus protagonistas e envergonhando seus fiadores.

Vejam-se exemplos como a escravidão, a violência de gênero, a religiosa, a sexual: sempre existiram e infelizmente continuarão a existir porque são resultado da ignorância do ser humano, da pouca luz emanada de determinadas sociedade. No entanto, a execração e a exposição públicas de seus atores contribuem para diminuir seus casos. O que deve merecer nossa repulsa é o crime e sua motivação, não o grito de dor de suas vítimas.

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