Quando o Charles Martinet, dublador de Mario e outros personagens do Reino dos Cogumelos, foi confirmado para a BGS 2019, a Brasil Game Show, em março deste ano, eu fiz questão de reforçar a cada conversa com a assessoria de imprensa do evento minha vontade de entrevistar o ícone da Nintendo. Inclusive, começo o texto dessa forma para pedir desculpas pela insistência e as piadas repetitivas (foi mal, Lívia!).
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E aconteceu. Na quinta-feira (10), primeiro dia aberto ao público da BGS, eu aguardava do lado de fora de uma sala pela chegada da figura, que se atrasou pois passou do tempo reservado para atender todos os fãs em uma sessão de autógrafos. No corredor do mezanino do Expo Center Norte, ele caminhava e torcia pescoços do público, tanto para o lado quanto para cima – o simpático homem de 64 anos tem 1,91 m de altura e respondia às reações com sorrisos e «olás».
Aguardei ser chamado e o encontrei conversando com D.C. Douglas, outro dublador alto, responsável pela voz do vilão Albert Wesker na franquia «Resident Evil». Os dois dividiram o palco da BGS Talks na sexta (11), quando responderam dúvidas do público sobre suas carreiras. Depois dos cumprimentos, sentamos em um sofá branco nos fundos da sala – comigo estava o estagiário Mattheus Goto, que ajudou filmando trechos da nossa conversa.
Charles Martinet começou a carreira com a Nintendo em 1990, quando invadiu uma audição que não tinha sido chamado. «Não parei de falar até a fita acabar, foram coisas como ‘vamos fazer pizza torta juntos’. Eu fui o único a seguir essa direção de ir falando até esgotar as minhas frases», contou. Para o dublador, o diferencial para conseguir o trabalho foi passar uma imagem de alegria e de um personagem divertido e brincalhão. «Esse é um resumo do que até hoje é o Mario.»
Seu primeiro grande trabalho em jogos da franquia foi com «Super Mario 64» (N64, 1996), mas foram as experiências antes do título, que revolucionou a indústria ao introduzir os gráficos em 3D, que moldaram o personagem. «Fiz animação em tempo real do Mario, e essa relação com as pessoas foi essencial para tomar decisões sobre ele. Eu entendi que era preciso moldá-lo como um ser humano ideal. Uma pessoa corajosa, otimista e que encara desafios com um ‘let’s go’!»
Depois vieram os jogos educativos para computador, como «Mario Teaches Typing» (1991) e «Mario’s Fundamentals» (1995). «Eu constantemente deixava de dizer a palavra ‘não’ quando eu falava com pessoas. Em ‘Typing’ decidi que, ao invés de dizer ‘não, isso não está certo’, eu diria ‘boa tentativa, vamos tentar de novo’, para dar uma mensagem positiva sempre», explicou.
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Com quase três décadas sendo a voz de Mario, seu irmão Luigi e vários outros da mesma franquia, questionei Martinet sobre o desafio de dublar personagens que não dizem longas frases ou monólogos – o contrário do próprio, que se empolga e dá longas respostas para cada pergunta. «É uma realidade diferente quando você não tem muitas palavras. Se você não pode dizer coisas em palavras, você precisa se expressar com intensidade. Não dá para imaginar um mundo em que Mario do nada começa a falar ‘vamos fazer pizza torta juntos e bla bla bla’, isso mudaria a dinâmica do jogo.»
Desde 1990 foram mais de 100 títulos trabalhados – o que o rendeu até um registro no livro dos recordes. Martinet conta que cada jogo demanda de 10 a 20 horas, com gravações que normalmente duram três ou quatro dias. Pergunto se, depois de tanto tempo e tantas sessões no estúdio, sua técnica foi mudando ou se aperfeiçoando. Ele nega. «É exatamente a mesma coisa. Nós tomamos decisões sobre o personagem no começo. É muito importante que, se você joga o primeiro jogo do Mario ou o mais recente, exista uma conexão instantânea de ‘esse é um jogo do Mario’.»
Esse resultado, segundo o dublador, é atingido graças a um esforço da Nintendo, que é conhecida por ser conservadora em sua fórmula. «Esse nível de integridade é o que realmente dá longevidade ao personagem. Não há outro personagem que tenha atingido isso, pelo menos nenhum que eu me lembre. E o cuidado de quem trabalha nos jogos é muito apreciado pelo público.»
Quando não está trabalhando nos próximos lançamentos, passa parte de seu tempo em viagens e participações em feiras como a BGS, que considera uma oportunidade de conhecer os fãs dos jogos e de seu trabalho. «Sou muito grato ao público, sua devoção pelos jogos nos dá a chance de continuar a fazê-los. É incrível estar em São Paulo, comer essa comida, conhecer as pessoas. Eu tenho uma vida maravilhosa.»
O que mais me chamou a atenção sobre Martinet é que sua animação, bom humor e felicidade são genuínos, não partem de uma persona para lidar com o público. É como se sua personalidade tivesse absorvido traços do que, lá no início, ele desejava para o encanador bigodudo. «Eu amo meu trabalho tanto, e isso é algo que eu desejo para todo mundo. Se você ama dirigir um caminhão, ou fazer móveis, procure alegria e aquilo que te dê significado», disse ao compartilhar sua filosofia de vida.
Nosso tempo estava perto de se encerrar e, como fã, deixei o jornalismo de lado para pedir um autógrafo em minha cópia de «Super Mario Odyssey» (Switch, 2017), assim como uma foto com o ídolo, que fez questão de gravar um vídeo ao meu lado em que disse frases famosas de Mario em inglês e português. Ao me despedir com um sorriso, virei e vi assessores e a próxima equipe de jornalistas, todos também com os dentes à mostra. Saí dali pensando na frase que Martinet me disse em sua última resposta: «A sua alegria pode trazer felicidade para a vida dos outros.»