A Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo cobrou, esta semana, explicações da Corregedoria da Polícia Militar sobre a denúncia de tentativa de execução durante a abordagem de policiais militares a três adolescentes no final de janeiro. Também foi enviado um ofício pedindo ao Ministério Público que seja designado um promotor para acompanhar as investigações e foram solicitadas informações sobre o andamento da apuração à Polícia Civil. A ouvidoria abriu ainda um protocolo para acompanhar os procedimentos desses órgãos sobre a apuração dos fatos.
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Na madrugada do dia 26 de janeiro, os dois passageiros de um carro roubado, Danilo* e Luís*, foram baleados pela Polícia Militar e ficaram com graves sequelas. O primeiro, de 16 anos, está paraplégico e o outro, de 17 anos, tem dificuldades para andar e falar. O motorista, Leonardo* (17 anos), também foi baleado, mas sem tanta gravidade.
O caso foi levado ao ouvidor Júlio César Fernandes Neves pela reportagem da Agência Brasil durante apuração da denúncia feita pelas famílias de dois jovens baleados na ocasião. O relato dos pais e dos adolescentes havia sido enviado à ouvidoria por meio do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e dos Adolescentes de Interlagos. Porém, o documento se extraviou no caminho e a ouvidoria só tomou conhecimento da situação durante o desenvolvimento da reportagem publicada pela Agência Brasil no dia 19 de abril. Os órgãos acionadas não têm, entretanto, prazo definido para responder as demandas da ouvidoria. “A gente tem que cobrar”, enfatizou Neves.
A Corregedoria da Polícia informou, por meio de nota, que vai apurar o relato repassado pela ouvidoria e que será feita uma auditoria nos autos do processo. “As novas informações serão apuradas por meio de inquérito policial militar”, informa o texto. Anteriormente, o órgão que apura desvios de conduta de policiais militares tinha declarado que não via indícios de irregularidades na ação.
Limites da ação
Apesar de os policiais envolvidos terem alegado que reagiram a uma tentativa de agressão, Neves vê sinais de que os agentes tentaram executar os jovens. “Estamos entendendo que os policiais que foram ao encalço desses três rapazes foram lá para matar os meninos”, acrescentou o ouvidor.
Entre os elementos que mostram que a ação dos policiais militares passou dos limites estão os ferimentos dos jovens. Ao menos dois deles foram atingidos nas costas. “Quando você vê que tem tiro nas costas e os tiros não são nos membros, esse tiro não foi para imobilizar, foi para matar”, ressaltou o ouvidor.
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O prontuário médico de Danilo indica ferimentos por arma de fogo no braço esquerdo, na coxa direita, nas costas e na coluna vertebral, o que causou paralisia dos membros inferiores. O documento traz as informações sobre o estado do paciente durante internação no Hospital Municipal Dr. Arhur Ribeiro Saboya.
Luís, que estava no banco detrás do carro, recebeu dois tiros, um na parte posterior da cabeça, próximo da nuca, e outro nas costas. Devido aos ferimentos, o adolescente teve perda de massa encefálica, passou dias em coma e contraiu meningite enquanto esteve internado. O relatório médico do Hospital São Paulo indica que, além da lesão cerebral, uma tomografia mostrou resquícios de material metálico dentro do crânio de Luís. A limpeza da área só pôde ser feita um mês após a internação, no dia 25 de fevereiro, quando a equipe médica considerou que o quadro clínico do jovem havia se estabilizado.
Perseguição
Na versão dos policiais, apresentada no boletim de ocorrência registrado no 27º Distrito Policial da capital, os jovens descumpriram uma ordem de parada e atiraram nos policiais através do vidro traseiro do carro. Nesse momento, segundo os PMs, teria havido o primeiro confronto, quando o sargento Vilson Rodrigues Lima afirma ter disparado seis vezes. Danilo e Luís dizem que Leonardo, o motorista, decidiu fugir para não ser preso, uma vez que havia roubado o carro três dias antes do ocorrido. Os dois adolescentes afirmam não ter participado do roubo.
Em seguida, os policiais dizem que o trio continuou a fuga até a colisão, quando o carro em que estavam os jovens se chocou com uma viatura e outros quatro veículos que haviam sido parados pelos policiais. Segundo o relato dos PMs no boletim de ocorrência, depois do acidente, Danilo, que estava no banco do passageiro, tentou sair do veículo com uma pistola em punho. Os policiais afirmam ainda que Leonardo, o motorista, também tinha um revólver na mão. Em depoimentos à Justiça e em conversas com as famílias, os jovens dizem que, após a batida, os policiais simplesmente abriram as portas do carro e dispararam diversas vezes. Eles dizem que não estavam armados nem entraram em confronto com os policiais.
Fundação Casa
Com duas passagens pelo sistema socioeducativo, nos últimos tempos, Danilo fazia, cursos técnicos, de acordo com a família. Devido ao estado de saúde dele, que está internado na Fundação Casa, a Defensoria Pública vem tentando a liberação do jovem ou ao menos o cumprimento de medida em regime aberto. “Quando a defensoria tomou conhecimento do caso dele, do estado de saúde dele, a gente fez um pedido de liberação, porque o juiz tinha decretado a internação provisória. Esse pedido foi reiterado duas ou três vezes e sempre negado pelo juiz”, contou a defensora Letícia Marquez Avelar. O jovem recebeu alta quatro dias após a entrada no Hospital Saboya, quando foi encaminhado para o sistema socioeducativo.
Um dos argumentos usados nos pedidos é justamente a recuperação de Luís, que não chegou a ser encaminhado à Fundação Casa. “Inclusive, tinha um outro adolescente junto, que foi até mais gravemente ferido do que o Danilo, que ficou imóvel, só mexia a cabeça, e o juiz deixou de decretar a internação provisória desse adolescente, por conta do estado de saúde dele. Ele está fazendo fisioterapia, recebendo os cuidados adequados e já está em um estágio bem mais avançado de recuperação do que o Danilo”, destacou Letícia.
Danilo foi acusado de receptação, resistência e tentativa de homicídio. Na sentença, o juiz Renato Genzani Filho considerou, no entanto, que não havia provas de que o jovem tivesse atentado contra a vida dos policiais. As outras acusações foram julgadas procedentes. A defesa, porém, nega que tenha havido resistência, dizendo que o trio apenas tentou fugir. “No caso desses adolescentes [Danilo e Luís], eles nem praticaram ato infracional. Eles só estavam andando em um carro roubado. Não há nem provas de que eles tenham cometido o ato infracional de receptação”, acrescentou a defensora ao rebater as acusações.
Entretanto, Letícia conta que não conseguiu nem marcar uma audiência para que o adolescente seja ouvido pela juíza que está cuidando do caso. “Mesmo que a audiência seja designada, eu não sei como vai ser, porque o Fórum do Brás, que atende todos os adolescentes em conflito com a lei na capital do estado de São Paulo, não tem nenhuma acessibilidade. As audiências são realizadas no primeiro andar e o único acesso é pelas escadas. Não tem elevador. Um adolescente nas condições que ele está, paraplégico, eu não sei como ele vai fazer para comparecer.”
Após o ocorrido, Leonardo, o motorista do veículo, também foi apreendido e cumpre medida socioeducativa.
O Ministério Público não retornou o contato da Agência Brasil.
*Os nomes são fictícios.