O Mercosul é importante para o Brasil? Deveria, afinal, estar ou não na lista de prioridades econômicas para o próximo governo?
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Tais questionamentos ganharam força após as declarações do futuro ministro da área econômica do governo do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), Paulo Guedes. Criado em 1991, tendo como sócios originais Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, o Mercosul é um bloco econômico que prevê ampla circulação de bens e serviços, com facilidades tarifárias no comércio entre os países-membros.
Em entrevista a jornalistas, Guedes afirmou que Argentina e Mercosul «não são prioridade» para o próximo governo. O objetivo principal, acrescentou, será comercializar com todo o mundo, como publicou a imprensa argentina.
O economista argumentou ainda que o Mercosul é «muito restritivo, o Brasil ficou prisioneiro de alianças ideológicas e isso é ruim para a economia». Ele também disse que o bloco, formado só negociava com quem tinha «inclinações bolivarianas», mas que isso não ocorrerá mais.
Questionado por uma jornalista argentina sobre se o Mercosul seria, então, «desmontado», Guedes respondeu: «Sua pergunta está mal feita. A pergunta é se vamos comercializar somente com a Argentina? Não. Somente com Venezuela, Bolívia e Argentina? Não. Vamos negociar com o mundo».
«O Mercosul não é prioridade. Não, não é prioridade. Tá certo? É isso que você quer ouvir? Queria ouvir isso? Você tá vendo que tem um estilo que combina com o do presidente, né? Porque a gente fala a verdade, a gente não tá preocupado em te agradar», acrescentou.
A BBC News Brasil levantou números para traçar um raio-X do bloco econômico formado por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.
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Ouviu, também, especialistas para entender se o Mercosul beneficia o Brasil ou trava nosso crescimento.
A conclusão é que, embora o bloco tenha perdido importância ao longo dos anos e precise ser modernizado, desmontá-lo poderia gerar um impacto prejudicial à economia brasileira, especialmente à indústria automobilística.
Entenda os motivos.
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‘Quinta maior economia do mundo’
Criado em 1991 pelo Tratado de Assunção, o Mercosul é hoje o terceiro maior bloco do mundo, depois do Nafta (México e Estados Unidos) e da União Europeia. Seu PIB total é de US$ 2,8 trilhões (R$ 10,4 trilhões).
Se fosse um país, o Mercosul seria a quinta maior economia do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China, Japão e Alemanha.
Participam do bloco como Estados-membros Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – a adesão da Bolívia ainda aguarda aprovação do Congresso brasileiro. Já a Venezuela, absorvida pelo grupo em 2012, foi suspensa em 2016.
Além disso, o Mercosul também conta com seguintes Estados associados: Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Suriname.
Trata-se de uma união aduaneira, ou seja, uma zona de livre-comércio (com eliminação ou diminuição gradual das tarifas alfandegárias dos produtos comercializados), mas que também adotou uma Tarifa Externa Comum (TEC).
Basicamente, essa tarifa, que varia de acordo com o tipo de mercadoria, visa a taxar tudo o que vem de fora do bloco.
Ou seja, torna esses produtos mais caros. Acaba sendo, portanto, um incentivo para que os países-membros comprem e vendam entre si.
É o caso dos automóveis, principal item exportado pelo Brasil ao restante do Mercosul.
Funciona assim: se a Argentina quiser comprar carros do Brasil, por exemplo, não precisa pagar nenhum imposto de importação (ou vice-versa). Mas se quiser comprar de fora do bloco, a alíquota será de 35%.
No ano passado, os automóveis de passageiros responderam por 22% de tudo o que vendemos dentro do bloco – US$ 22,6 bilhões (R$ 84 bilhões).
O resultado desse ‘protecionismo’ é óbvio: incapaz de fazer frente a outros países do mundo, a indústria nacional brasileira, menos competitiva, sai favorecida, dizem especialistas.
No ano passado, nove em cada dez produtos exportados pelo Brasil ao Mercosul foram manufaturados (89%). O bloco ainda é destino de 25% de todas as exportações brasileiras.
Além disso, no mesmo período, exportamos para nossos vizinhos muito mais do que importamos deles. Conclusão: nosso saldo foi de US$ 10,7 bilhões (R$ 39,7 bilhões) em 2017, o que contribuiu para fecharmos nossa balança comercial no azul.
O Mercosul é também o maior mercado para cerca de 7.000 micro, pequenas e médias empresas exportadoras brasileiras: 20% das exportações têm como destino países-membros do bloco.
«Como uma área de livre-comércio que conseguiu eliminar barreiras alfandegárias e aumentar o fluxo comercial entre os países-membros, o Mercosul é muito positivo», diz à BBC News Brasil Pedro Motta Veiga, senior fellow do CEBRI (Centro Brasileiro de Relações Internacionais) e diretor do Cindes (Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento).
Segundo dados oficiais, desde sua criação, o comércio dentro do Mercosul se multiplicou mais de 8 vezes em quase 30 anos.
Mas, segundo Motta Veiga, «o bloco vem perdendo peso na agenda dos países».
«Claro que o fato de cada país ter acesso preferencial ao mercado do vizinho é positivo para todos eles. Todos têm uma agricultura muito competitiva que não depende do Mercosul. Mas o mesmo não se aplica à indústria. Portanto, o Mercosul acaba favorecendo esse setor», diz.
«O problema é que acabamos nos acomodando. Ou seja, conseguimos exportar para dentro do bloco, mas não para fora. Não há incentivo para que a indústria ganhe competitividade», acrescenta.
O economista argentino Fausto Spotorno, diretor de OJF Consultores, de Buenos Aires, concorda.
«O Mercosul não avança há muito tempo. O bloco está muito limitado ao setor, principalmente, de automóveis e ao fato de ser uma união aduaneira», diz ele em entrevista à BBC News Brasil.
«Ou seja, virou um agrupamento de países preocupados com que o mundo não nos invada. As reformas precisam ser feitas, mas é preciso saber como».
‘Clube protecionista’
Para José Botafogo Gonçalves, que foi embaixador especial para Assuntos do Mercosul e ministro da Indústria, do Comércio e do Turismo durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o Mercosul precisa deixar de ser «um clube protecionista e voltar a negociar com o resto do mundo».
«Os países-membros precisam se reunir e discutir novas formas de interagir com o resto do mundo», diz ele, que também foi embaixador em Buenos Aires e é atualmente conselheiro do CEBRI.
Botafogo Gonçalves lembra que, desde que foi criado, o Mercosul só firmou três acordos multilaterais: com Palestina, Egito e Israel – pelas regras do bloco, os países-membros não podem firmar acordos bilaterais.
O acordo com a União Europeia, por exemplo, que vem sendo discutido há anos, ainda não foi selado.
«Só que desses acordos vigentes, apenas o de Israel está realmente funcionando», diz.
Solução?
Ele alerta, contudo, que a solução não seria «acabar com o Mercosul». Tampouco deixar de priorizar a Argentina, nosso terceiro maior parceiro comercial e principal destino de nossas exportações de manufaturas.
«As declarações de Paulo Guedes revelam falta de conhecimento no assunto. Precisamos abrir mais a economia brasileira, mas não podemos fazer isso à revelia das regras do Mercosul. Isso causaria um impacto muito forte na nossa indústria, especialmente a automobilística em São Paulo», diz.
O economista Marcelo Elizondo, professor de economia internacional do Instituto Tecnológico de Buenos Aires, compartilha a preocupação.
«Se o Brasil abrir sua economia, firmando acordos de livre-comércio diretamente com outros países, também deverá esperar a reação dos setores no seu próprio mercado interno», diz.
«Não acho que Paulo Guedes tenha dito que quer desmontar o Mercosul. Mas sim, está claro que o Brasil, (futuramente) governado por Bolsonaro, quer buscar a realização de comércio com países grandes como Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul», acrescenta.
Para o ex-ministro das Relações Exteriores do Uruguai Sergio Abreu, o mundo «era outro» quando o Mercosul foi fundado.
«Se hoje a China é a principal parceira do Brasil, é porque alguma coisa mudou. Quando o Mercosul foi fundado, o mundo era outro».
Segundo ele, o bloco sofreu «ideologização» durante o governo Lula, o que «prejudicou o Brasil e a todos do bloco».
«Eu concordo quando Bolsonaro fala sobre o fim da ideologia do Mercosul e acho que não existe mais alternativa, temos que abrir o Mercosul», diz.
«Queremos mais abertura, mas que as regras sejam respeitadas. A abertura do Mercosul será boa para todos. Porque ou damos vida ao Mercosul, ou o enterramos», completa.
Para além da economia
Motta Veiga, do Cindes, lembra ainda que nem tudo gira em torno da economia.
Em 2009, foram implementadas medidas para facilitar a livre circulação de pessoas.
Além da dispensa do passaporte para viagens entre os países-membros (basta apresentar um documento de identidade válido), cidadãos podem, desde então, viver e trabalhar legalmente em outros países do bloco sem muita burocracia.
Isso sem falar nos convênios educacionais – que permite a alunos brasileiros estudarem na Argentina usando a nota do Enem – e acordos previdenciários, que contabilizam o tempo de trabalho fora do país de origem do cidadão para fins de aposentadoria.
«Sem dúvida, precisamos renegociar os termos do Mercosul, tal como fez o Trump com o Nafta, mas uma ruptura unilateral é uma estupidez», conclui.
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