“Saíamos para pescar no rio Doce, em Colatina. Nos dividíamos em duas equipes: eu, meu marido, meus três filhos e meu irmão. Passávamos dia e noite no rio e de lá mesmo vendíamos o pescado e voltávamos com o dinheiro para casa”. O depoimento da pescadora Joselita Maria de Jesus Corrêa, 48 anos, retrata a rotina desses profissionais antes da lama de rejeitos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), atingir o rio Doce, em 5 novembro de 2015. Às vésperas de completar 4 anos, ainda há dúvidas sobre a qualidade do pescado.
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A família de Joselita perdeu, além da renda, a relação com o rio. “Hoje, nosso nome está sujo, temos dívidas, porque o que recebemos com o cartão (auxílio) não é nem a metade da renda que tínhamos antes. Psicologicamente meu marido também foi afetado, ele está depressivo, fica nervoso por não poder ir trabalhar. Ele era acostumado a ficar no rio, ele pesca desde os sete anos, e agora se vê sem o lazer e sem a fonte de renda”, desabafa.
A vida da pescadora e de sua família mudou quando 39 milhões de m3 de rejeitos de mineração começaram a se deslocar pela bacia do rio Doce até a foz em Regência, Linhares. Um percurso de 670km. Pelo caminho, a lama provocou 19 mortes, destruiu parte da natureza e afetou a vida de pessoas de 39 municípios – de Minas Gerais e Espírito Santo – ao longo da bacia do rio.
Do dia 5 de novembro de 2015 até hoje, nenhum responsável pela tragédia foi punido ou preso. Muitos atingidos ainda não foram reconhecidos; as prometidas assessorias técnicas aos impactados não tiveram contrato assinado; e ainda há dúvidas sobre a qualidade da água e do pescado.
“Estamos chegando aos quatro anos com poucos avanços concretos na reparação dos atingidos aqui no Espírito Santo. Temos muita dificuldade em avançar nos programas indenizatórios. De 100 mil cadastrados, temos em torno de 10 mil acordos feitos”, avalia o defensor público estadual Rafael Portella.
Entre as categorias com mais entraves no reconhecimento estão artesãos, lavadeiras, carroceiros, pescadores sem documentação e até mulheres, que tinham papel ativo na renda da família e são consideradas dependentes nos auxílios financeiros disponibilizados pela Fundação Renova, responsável pelos programas de compensação e reparação do rompimento da barragem.
Um relatório feito pela empresa Ramboll a pedido do MPF (Ministério Público Federal) aponta uma possível subestimação do número de pessoas vinculadas à cadeia de pesca afetadas. Um documento aponta 1.665 pessoas afetadas na cadeia da pesca em todo o rio Doce, enquanto outro indica 14.272.
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Levantamentos que mostram o impacto de uma tragédia que está longe de ter um ponto final.
Tragédia de Mariana: 4 anos de impactos sem ponto final
Impactos na saúde
Crescem até hoje os relatos nas comunidades de impactos da lama na saúde, como problemas na pele, no cabelo, no estômago. Além dessas situações, a depressão é um relato comum entre as pessoas que tiveram seu modo de vida alterado com a chegada da lama de rejeitos, explica Heider Boza, do MAB. No momento, tem sido feito um trabalho de elaborar planos de ação para fortalecer o SUS (Sistema Único de Saúde) nos municípios, segundo o defensor público Rafael Portella. “A Renova não reconhece o problema da saúde”, disse. As prefeituras de Linhares, Colatina e Baixo Guandu informaram que estão elaborando os planos juntamente com as comunidades. “Percebemos o impacto nos serviços que oferecemos, principalmente o aumento de pessoas com transtorno mental, depressão e problemas de pele. As pessoas que tinham trabalho garantido pela pesca e artesanato tiveram impacto muito grande. Se acentuaram as queixas também de dores no estômago”, disse a secretária de saúde de Baixo Guandu, Terezinha Bolzani.
Dúvidas sobre qualidade da água
Em Colatina, a água que abastece a cidade vem toda do rio Doce. Por isso, na época do rompimento da barragem, a cidade ficou cerca de uma semana sem água, devido à passagem da lama. Mesmo com laudos indicando que a água está apta a ser consumida, muitos moradores do município ainda compram água mineral para beber, e dizem sentir diferença na pele e no cabelo ao tomar banho.
Reassentamento em Bento Rodrigues
Primeira localidade a ser atingida e destruída pela lama da barragem, o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), começou a ser reconstruído em outro local somente em julho deste ano. O terreno, em Lavoura, a 9km da área atingida, foi escolhido pela comunidade. Mas até hoje, nenhuma família foi reassentada. Foram oferecidas 414 moradias temporárias na cidade de Mariana para 255 famílias, segundo relatório da Ramboll, elaborado à pedido do MPF. A previsão é que as famílias habitem as novas casas só no ano que vem.
Qualidade do pescado
A contaminação dos peixes por metais ao longo do rio Doce e no mar ainda é dúvida. A pesca na região da foz continua proibida desde o rompimento da barragem por dúvidas na segurança alimentar. Em maio deste ano, saiu o primeiro relatório sobre a contaminação de peixes e a Anvisa chegou a indicar um consumo seguro para a saúde, mesmo com a presença de metais pesados, mas não foi suficiente para liberar a pesca. Neste mês, sai um novo relatório da pesquisa, que está sendo realizado pela Ufes. O impacto nos peixes vai além. Na calha do rio, pesquisadores observaram um aumento na população de peixes exóticos — tilápia, piranha e tucunaré — em relação aos nativos — lambaris, piabas, cascudos e robalo, na foz. O pesquisador da Rede Rio Doce Mar Jorge Dergam explicou que isso acontece porque as espécies exóticas são super-resistentes em relação às mudanças no habitat. Como os nativos são mais sensíveis, são também mais ameaçados.
Contratação das assessorias técnicas
Um ano depois de terem começado a ser escolhidas pelas comunidades impactadas no Espírito Santo e após o processo ter sido homologado pela Justiça, as assessorias técnicas ainda não tiveram o contrato assinado. As assessorias, autorizadas com a assinatura do TAC Governança, vão garantir e auxiliar a participação dos impactados nas tomadas de decisão, podendo até revisar alguns programas de recuperação. “É uma conquista dos atingidos que ainda não começou a funcionar. Elas são essenciais para fazer circular o acesso à informação e também garantirá uma revisão de programas ou até contrapor laudos técnicos das empresas”, destaca o integrante do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) Heider Boza.
Grupos esperam reconhecimento
Mesmo com 320 mil pessoas tendo sido reconhecidas como impactadas e passível de indenização, muitos grupos ainda aguardam o atendimento de suas solicitações. Pescadores que não tinham como comprovar o ofício, outros integrantes da cadeia da pesca, mulheres, surfistas, faiscadores (garimpam ouro no leito) e outras atividades ligadas ao rio, como artesãs e areeiros, ainda aguardam ser reconhecidos pela fundação Renova. O programa Pescador de Fato foi uma maneira de procurar indenizar os trabalhadores sem documentação, por exemplo, mas menos de 20% dos que se inscreveram conseguiram a indenização. “Enquanto tiver a lógica de que quem cometeu o dano vai decidir quem pode ser reparado ou não, mais acidentes como o de Mariana vão acontecer”, enfatizou o procurador da República em Linhares, Paulo Henrique Trazzi.
Nenhum responsável foi punido
As 22 pessoas apontadas como responsáveis pelo rompimento da barragem da Samarco não foram punidas criminalmente. O processo está parado no TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região). Em outubro de 2016, o MPF (Ministério Público Federal) denunciou a Samarco e suas acionistas, a Vale e a BHP Billiton, e a empresa VogBR, que deu laudo de estabilidade da barragem. Diretores da Samarco e seu então presidente, Ricardo Vescovi, também foram denunciados por crime ambiental, inundação e desabamento. Eles também respondem pelo homicídio de 19 pessoas. “Isso traz uma sensação de impunidade muito grande. Estamos longe de um desfecho definitivo”, disse o procurador da República Paulo Trazzi.
Restauração florestal
Um dos programas a serem feitos pela Fundação Renova é a restauração florestal. Relatório feito a pedido do MPF (Ministério Público Federal) aponta que 754,14 hectares de vegetação nativa foram afetados, enquanto análise da Renova considera 561,04 hectares. O prazo para a recuperação dessa área se encerra em março do ano que vem. O relatório (de julho de 2019) mostra que foram implantados 135 hectares e ressalta a dificuldade de cumprir o prazo, sendo que menos de um terço do plantio foi concluído.
Informalidade é o maior desafio para indenizações, diz Renova
O ambiente de alta informalidade que predomina nas áreas do rio Doce atingidas pelo rompimento da barragem é considerado pela Fundação Renova o maior desafio para o pagamento das indenizações.
Criada para desenvolver os programas de reparação e compensação em toda a bacia do rio Doce, a Renova diz que quer finalizar o ano de 2019 com R$ 2 bilhões pagos em indenizações. E informou que até o mês de agosto, 320 mil pessoas foram indenizadas e receberam auxílios financeiros emergenciais, totalizando um repasse de R$ 1,84 bilhão para esse fim.
A respeito da saúde, a Renova disse que está firmando parcerias com duas fundações para realizar estudos sobre saúde e aprofundar o entendimento dos impactos do rompimento. As pesquisas serão contratadas por meio de editais e vão tratar os temas de Saúde Mental, Toxicologia, Epidemiologia Descritiva e Saúde do Trabalhador.
Sobre a qualidade da água, explica que os mais de 6 milhões de dados coletados nos dois anos mostram que as condições da água são similares às de antes do rompimento.
Já sobre as assessorias técnicas, a Renova informou que, por uma questão de autonomia dos atingidos, não participa dos processos que visam a constituição das Comissões Locais e Câmaras Regionais, bem como da seleção das assessorias técnicas.
Trabalho mudou completamente
Foram 10 anos de dedicação ao artesanato. A vida de Lucilene Angélica Soares, 54 anos, que transformava escamas de peixes, areia do rio e até pedras, em arte, mudou completamente com a chegada da lama no rio Doce.
A artesã luta junto à Associart (Associação de Artesãos de Baixo Guandu) para ser reconhecida como atingida pela barragem, mas, até o momento, não recebeu nenhuma indenização. “Minha atividade primária é o artesanato, mas ficamos sem nossa matéria-prima. Busquei um novo emprego e hoje sou funcionária pública. Os trabalhos manuais ficaram para as horas vagas”, conta.
Lucilene amarga a mudança de profissão e sente também na pele os impactos da tragédia ocorrida em novembro de 2015. “A irritação nos olhos, ressecamento na pele e coceira são os sintomas sentidos.”