Se você nunca foi seguido dentro de um supermercado ou de uma loja, você é um privilegiado sim. Se nunca teve que explicar que aquela bicicleta ou aquele carro novo são seus, também se considere um sortudo, assim como se nunca foi ignorado em um restaurante, barrado na porta de uma balada ou confundido com um criminoso apenas por caminhar na rua. Agora, se você é negro, muito provavelmente já vivenciou essas e outras tantas situações que escancaram o racismo estrutural no Brasil.
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Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a soma de pretos e pardos representa 54,7% da população do País. Mas uma pergunta importante deve ser feita neste mês em que se celebra a Consciência Negra: onde essas pessoas se encontram? Ainda hoje, poucas ocupam cargos públicos, cadeiras nas universidades ou postos em empresas. Essa exclusão tão enraizada deixa marcas profundas, carregadas por toda uma vida.
“É uma ferida que não cicatriza. Sair de casa é estar ciente de que vou ter que enfrentar um olhar, um questionamento por estar ocupando determinados espaços”, diz a relações públicas, empreendedora e estudante de Direito Luciana Marcelino, de 34 anos e negra.
Muitas vezes, nem onde se vive é possível ter paz. Luciana conta que a família já passou por situações constrangedoras no próprio condomínio em que moram, em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo. “Uma vez, minha mãe estava aguardando o elevador social para subir para o nosso apartamento quando uma senhora a abordou e indicou a localização do elevador de serviço. A mulher não era moradora, estava indo visitar a filha, mas se sentiu dona daquele lugar e presumiu que minha mãe fosse a doméstica de alguma das unidades. Isso dói, ainda mais porque não é algo pontual. Me vejo desde criança tendo que me preocupar como vou me vestir para ir até a esquina para não ser confundida ou mal tratada.”
A vida do homem negro, então, é regada a mais violências ainda, como aponta a própria Luciana. “Quanto à mulher preta, a sociedade questiona: ‘o que você está fazendo nesse ambiente?’. Em relação ao homem, o olhar é de medo. Meu pai, por exemplo, foi educado para andar sempre com o documento e com a carteira de trabalho. Assim, se a polícia o abordasse, ele poderia provar que era trabalhador e não bandido”, diz a RP. “Cresci entendendo que a gente precisa ter esse tipo de cuidado sempre. É triste ter que ouvir que antes de ser uma pessoa boa você precisa parecer uma pessoa boa”, completa.
Para quem é negro, o racismo estrutural fica claro desde muito cedo. Luciana estudou em uma escola particular em que ela era a única menina negra. “As outras crianças perguntavam por que meu cabelo era assim. Eu não sabia o que responder. Foi quando eu comecei a perceber o que acontecia. Além de mim, a única pessoa preta era a moça da cantina. Ela via como eu ficava deslocada e me acolhia, falava coisas bacanas”, lembra.
Uma situação específica marcou a infância de Luciana de uma maneira muito intensa. Em certa ocasião, os alunos desta mesma escola participaram de uma celebração em que precisavam levar um doce ou um salgado. O que era pra ser um momento de alegria acabou virando uma lembrança que a machuca até hoje. “Eu tinha uns 9 anos e meu pai fez um bolo de chocolate que eu amava, chamado nega maluca. Nenhuma criança tocou nele. Algumas chegaram a falar: ‘ela tirou um pedaço dela para fazer o bolo. Não vou comer, credo!’. Esse episódio me machucou muito e me emociono até hoje ao recordar.”
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As situações pelas quais a RP passou – e ainda passa – são incontáveis, seja no âmbito profissional, nos momentos de lazer ou na busca pela realização de seus sonhos. Ela conta que por muito tempo, seu maior desejo era passar despercebida nos lugares que frequentava. Hoje, mais empoderada e ciente de que a luta é necessária, ela faz questão de marcar presença como forma de resistência. “Antes eu pensava que se não me notassem era sinal de que eu era ‘normal’. Agora, faço questão de chamar atenção por onde passo para mostrar que aquele espaço também é meu, assim como quem diz ‘vão ter que me engolir aqui’.”
As raízes do privilégio branco
“Privilégio branco é o direito de existir sem ser incomodado. É o direito de sair com a sua bike sem precisar explicar que ela é sua. De sair sem identidade no bolso. De entrar em uma loja e ser atendido. É o direito de ter uma tatuagem e não ser confundido com um bandido ou de usar um black power e não ser atacado por isso.” A definição, clara e precisa, é da professora do Departamento de Ciências da Educação da Universidade Federal de Rondônia Rosangela Hilário, que também lidera o grupo de pesquisa ativista Audre Lorde.
Para explicar as raízes das desigualdades no Brasil, Rosangela resgata fatos históricos que passam inevitavelmente pela educação. “Ao negro foi negado o direito de estar em livros didáticos, de ter sua história contada. Por mais de 20 anos, fomos impedidos de frequentar escolas, e hoje a sociedade nos cobra meritocracia. Não nos foi dado o senso de pertencimento, nossa religião foi criminalizada e nossa cultura, negada. Nada nos foi garantido, nem mesmo o direito de sermos reconhecidos como cidadãos universais”, aponta.
Já Dennis de Oliveira, professor do curso de Jornalismo da USP (Universidade de São Paulo) e autor de livro “Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica”, resgata o conceito de branquitude normativa para entender o privilégio branco. “Como temos a presença maior de brancos nos setores de poder, há uma identificação automática, como se esse fosse o padrão humano. E o branco, muitas vezes, não consegue entender esse privilégio. O fato é que, uma vez que você está acostumado com ele, o considera algo normal”, afirma.
Amailton Magno Azevedo, professor do departamento de História da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e estudioso de questões raciais, insere no debate o sociólogo Guerreiro Ramos, que na década de 1950 discutia branquitude. “Já naquela época, ele questionava privilégios e como eles se estruturavam nas relações sociais brasileiras. Ele falava em um mal estar civilizatório, em que os privilégios haviam cegado o branco brasileiro e, por isso, ele padecia de uma patologia social. Isto seria a particularidade da branquitude do Brasil: não enxergar, não considerar e não conceber o racismo, porque a população branca estaria mergulhada nessa cegueira”, explica.
O papel da pessoa branca
Para Rosangela, hoje o privilégio branco já é compreendido com mais clareza, porém traz mal estar. “Dizer que o racismo é ‘mimimi’ é uma maneira de se defender. As pessoas brancas costumam se incomodar quando a questão da equidade racial é levantada. É chato admitir o racismo.”
“Parte da população fala que o Brasil é racista, condena o comportamento, mas não se assume racista. Se queremos mudança, o primeiro passo é o branco reconhecer que tem privilégios e cuidar para não cair em um discurso perigoso – o da meritocracia. Dizer que se conseguiu algo por mérito costuma ser um contraponto ao privilégio branco, e quando se diz isso, entende-se que a pessoa negra – que não conseguiu a mesma coisa – não tem mérito nenhum”, alerta Oliveira. “Não se deve desqualificar o esforço do branco, mas sim reconhecer que ele foi facilitado em função da cor da pele. O negro também se esforça, mas não consegue ascender por conta do racismo estrutural.”
Para Azevedo, o papel da pessoa branca na luta por uma sociedade antirracista é essencial. “O racismo não é uma invenção negra, e sim uma invenção branca. Portanto, cabe também aos brancos questionar e educar outros brancos sobre seus privilégios”, enfatiza.
Combo para a mudança
Ainda segundo o professor da PUC-SP, ações afirmativas - como a política de cotas - e investimento na educação, sobretudo na reeducação do mundo acadêmico, empresarial midiático e político, são as formas de se alcançar um Brasil mais justo.
É também pelos bancos acadêmicos que a docente da Federal de Rondônia acredita que a sociedade possa caminhar. “É preciso formar pessoas para uma educação antirracista, antifascista, anti-homofóbica. Acredito em uma educação que inclua as pessoas em processos. Assim poderemos alcançar o desenvolvimento social para todos”, diz Rosangela.
“Temos que nos enxergar como um país negro, construído a partir de mão de obra africana escravizada, desde a construção de igrejas até a origem da tecnologia empregada na metalurgia, na agricultura e na mineração. O fato de não reconhecermos essas raízes históricas, tecnológicas, culturais e sociais impede que o projeto de uma sociedade igualitária se constitua”, afirma o professor da USP.
Luciana, a personagem do início dessa matéria, endossa as palavras de Oliveira. “É necessário conhecer a nossa história, a história da comunidade preta. E ela tem que ser contada por nós”, finaliza.
*Todos os especialistas ouvidos para essa reportagem são negros.