A cena é corriqueira, comum a tal ponto que, para muitos, nem chega a chamar atenção, muito menos incomodar. Ao passar em frente a uma escola particular em horário de saída, observa-se crianças - em sua grande maioria brancas - entrando nos carros dos pais ou em vans que as levarão direto para casa. Lá, muito provavelmente, vão estudar, descansar, brincar e quem sabe sair para praticar um esporte ou aprender uma segunda língua. Metros a frente desse mesmo colégio, crianças negras vendem balas no farol. E está tudo bem. Está mesmo tudo bem?
ANÚNCIO
“Naturalizar essas desigualdades é a manifestação mais clara do racismo estrutural”, diz Dennis de Oliveira, professor do curso de Jornalismo da USP (Universidade de São Paulo) e autor de livro “Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica”, lançado em maio deste ano pela editora Dandara.
O termo racismo estrutural é empregado para explicar que existem sociedades baseadas na discriminação. Nesse contexto, algumas raças são privilegiadas em detrimento de outras. No Brasil, essa diferença favorece os brancos enquanto segrega os negros.
LEIA TAMBÉM:
- ‘Privilégio branco é o direito de existir sem ser incomodado’; especialistas falam sobre desigualdade racial e formas de combatê-la
- Profissionais negros recebem até 34% a menos do que brancos, mostra levantamento
- Cidades têm protestos contra Bolsonaro e racismo neste sábado
A explicação para esse modelo social instituído está na história do nosso País. “Nosso passado escravagista e a negação de oportunidades acabaram criando o cenário atual”, afirma Oliveira. “A escravidão negou a cidadania e a humanidade aos negros. E a forma como a abolição foi feita também determinou o que vemos hoje. Trata-se do conceito de abolição inacabada. Disseminou-se a ideia de que o negro não poderia trabalhar de forma assalariada. Os postos foram ocupados pelos imigrantes, a partir de um projeto político da época, o que fez com que os negros saíssem da senzala para viverem marginalizados. Esse é o ponto de partida do racismo estrutural”, completa.
Especificidades brasileiras
O autor afirma que o racismo estrutural brasileiro tem características únicas. Se compararmos Brasil e Estados Unidos, por exemplo, o primeiro ponto a ser destacado é o contingente populacional. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a soma de pretos e pardos representa 54,7% da população do País. Já nosso vizinho do norte tem a população de negros estimada em cerca de 15%. Ou seja, temos a grande maioria negra e, ainda assim, é ela a excluída.
“Na década de 1970, interessou aos Estados Unidos atender parte das reinvindicações negras com o intuito de criar um mercado consumidor negro. Já no Brasil, o mercado consumidor é voltado para fora, para a exportação. Então não interessa fazer o mesmo aqui. Além disso, nos Estados Unidos a abolição foi conquistada pela Guerra Civil e houve política de reparação, como concessões de acres de terra e uma mula. No Brasil, a população negra não foi indenizada, pelo contrário: os senhores é que foram”, aponta Oliveira.
ANÚNCIO
‘Neurose cultural’
Em seu livro, o professor ressalta um conceito da antropóloga Lélia Gonzalez, pioneira nos estudos sobre Cultura Negra no Brasil, que define bem a característica do racismo brasileiro.
“Lélia falava que o Brasil é ‘amefricano’, ou seja, construído por negros. Dizia ainda que aqui se fala ‘pretoguês’. Com isso, ela afirmava que o racismo brasileiro é quase uma ‘neurose cultural’, uma vez que as pessoas brancas negam algo da qual fazem parte, se incomodam em viver em um país negro. E a presença da pessoa preta, seja homem ou mulher, torna isso concreto, pois as faz lembrar dessa realidade. E é por essa razão que se age violentamente contra o negro”, esclarece.
A saída
Após olhar para trás e entender o caminho que nos trouxe até aqui, é hora de pensar em alternativas para transformar a sociedade.
Ações afirmativas, como a política de cotas, são importantes, porém isoladas surtem pouco efeito, como afirma o professor da USP. “Elas devem ser combinadas com políticas públicas, envolvendo educação, saúde, valorização do salário mínimo e dos programas de distribuição de renda e geração de emprego. De nada adianta haver cotas nas universidade se essas não tiverem verba para garantir o acesso dos estudantes”, avalia. “É preciso qualidade e assistência nesses espaços públicos.”
Ainda segundo o especialista, se faz necessário reconhecer que a população branca tem uma dívida com a população negra. “Mexer em privilégios que foram construídos e legitimados é fundamental. Se isso não for feito, nada se modificará”, finaliza.