A cena é corriqueira, comum a tal ponto que, para muitos, nem chega a chamar atenção, muito menos incomodar. Ao passar em frente a uma escola particular em horário de saída, observa-se crianças - em sua grande maioria brancas - entrando nos carros dos pais ou em vans que as levarão direto para casa. Lá, muito provavelmente, vão estudar, descansar, brincar e quem sabe sair para praticar um esporte ou aprender uma segunda língua. Metros a frente desse mesmo colégio, crianças negras vendem balas no farol. E está tudo bem. Está mesmo tudo bem?
“Naturalizar essas desigualdades é a manifestação mais clara do racismo estrutural”, diz Dennis de Oliveira, professor do curso de Jornalismo da USP (Universidade de São Paulo) e autor de livro “Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica”, lançado em maio deste ano pela editora Dandara.
O termo racismo estrutural é empregado para explicar que existem sociedades baseadas na discriminação. Nesse contexto, algumas raças são privilegiadas em detrimento de outras. No Brasil, essa diferença favorece os brancos enquanto segrega os negros.
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A explicação para esse modelo social instituído está na história do nosso País. “Nosso passado escravagista e a negação de oportunidades acabaram criando o cenário atual”, afirma Oliveira. “A escravidão negou a cidadania e a humanidade aos negros. E a forma como a abolição foi feita também determinou o que vemos hoje. Trata-se do conceito de abolição inacabada. Disseminou-se a ideia de que o negro não poderia trabalhar de forma assalariada. Os postos foram ocupados pelos imigrantes, a partir de um projeto político da época, o que fez com que os negros saíssem da senzala para viverem marginalizados. Esse é o ponto de partida do racismo estrutural”, completa.
Especificidades brasileiras
O autor afirma que o racismo estrutural brasileiro tem características únicas. Se compararmos Brasil e Estados Unidos, por exemplo, o primeiro ponto a ser destacado é o contingente populacional. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a soma de pretos e pardos representa 54,7% da população do País. Já nosso vizinho do norte tem a população de negros estimada em cerca de 15%. Ou seja, temos a grande maioria negra e, ainda assim, é ela a excluída.
“Na década de 1970, interessou aos Estados Unidos atender parte das reinvindicações negras com o intuito de criar um mercado consumidor negro. Já no Brasil, o mercado consumidor é voltado para fora, para a exportação. Então não interessa fazer o mesmo aqui. Além disso, nos Estados Unidos a abolição foi conquistada pela Guerra Civil e houve política de reparação, como concessões de acres de terra e uma mula. No Brasil, a população negra não foi indenizada, pelo contrário: os senhores é que foram”, aponta Oliveira.
‘Neurose cultural’
Em seu livro, o professor ressalta um conceito da antropóloga Lélia Gonzalez, pioneira nos estudos sobre Cultura Negra no Brasil, que define bem a característica do racismo brasileiro.
“Lélia falava que o Brasil é ‘amefricano’, ou seja, construído por negros. Dizia ainda que aqui se fala ‘pretoguês’. Com isso, ela afirmava que o racismo brasileiro é quase uma ‘neurose cultural’, uma vez que as pessoas brancas negam algo da qual fazem parte, se incomodam em viver em um país negro. E a presença da pessoa preta, seja homem ou mulher, torna isso concreto, pois as faz lembrar dessa realidade. E é por essa razão que se age violentamente contra o negro”, esclarece.
A saída
Após olhar para trás e entender o caminho que nos trouxe até aqui, é hora de pensar em alternativas para transformar a sociedade.
Ações afirmativas, como a política de cotas, são importantes, porém isoladas surtem pouco efeito, como afirma o professor da USP. “Elas devem ser combinadas com políticas públicas, envolvendo educação, saúde, valorização do salário mínimo e dos programas de distribuição de renda e geração de emprego. De nada adianta haver cotas nas universidade se essas não tiverem verba para garantir o acesso dos estudantes”, avalia. “É preciso qualidade e assistência nesses espaços públicos.”
Ainda segundo o especialista, se faz necessário reconhecer que a população branca tem uma dívida com a população negra. “Mexer em privilégios que foram construídos e legitimados é fundamental. Se isso não for feito, nada se modificará”, finaliza.