P: O que o levou a descobrir arsênico em encadernações do século XIX e qual foi sua reação?
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- A descoberta foi fruto do acaso. No Laboratório de Conservação da Biblioteca do Museu, Jardim e Biblioteca Winterthur, eu estava reparando um livro encadernado em tecido verde brilhante para preparar uma exposição. Enquanto examinava o livro no microscópio, percebi que pequenas escamas de pigmento verde estavam se soltando do tecido. Naquele momento, eu estava lendo o livro de Lucinda Hawksley ‘Bitten By Witch Fever’ (’Mordido pela febre das bruxas’), que trata sobre papéis de parede históricos que contêm arsênico na coleção dos Arquivos Nacionais do Reino Unido. Fiquei curioso para saber se o pigmento verde descascado poderia conter arsênico, então levei o livro para minha colega, Dra. Rosie Grayburn, chefe de Pesquisa e Análise Científica de Winterthur. Ela realizou uma técnica chamada espectroscopia de fluorescência de raios X (ou XRF), que pode identificar certos elementos sem causar danos aos objetos do patrimônio cultural. Ela encontrou arsênico e cobre, e depois realizou um teste adicional chamado espectroscopia Raman, que nos disse que o composto era acetato de cobre arsenioso, ou pigmento ‘verde esmeralda’. É um pigmento muito tóxico, por isso ficamos surpresos em encontrá-lo em um livro em uma quantidade tão grande.
Dado que esse tipo de encadernação foi produzido em massa durante o século XIX, percebemos que poderia haver muitas encadernações semelhantes na Biblioteca de Winterthur e em outras coleções. Iniciamos o Projeto Livro Envenenado para descobrir e conscientizar sobre esse perigo inesperado nas coleções de livros.
P: Como o uso do arsênico se generalizou na encadernação durante o século XIX?
- Tudo girava em torno da intensa cor verde esmeralda. O verde esmeralda foi sintetizado pela primeira vez por químicos alemães no início do século XIX. É um verde vibrante e autêntico que não desbota com a luz do Sol, por isso se tornou muito popular em todos os tipos de produtos domésticos ao longo do século. Sabemos que era usado em roupas, sapatos, chapéus, bolsas, brinquedos infantis, pintura mural e papel de parede. Então não é surpreendente que também tenha sido usado na encadernação. O verde esmeralda era usado no tecido de encadernação, no papel e até mesmo para colorir as bordas dos livros. Ao mesmo tempo, o verde esmeralda era vendido como raticida e inseticida agrícola, por isso muitos consumidores não sabiam que era tóxico. Muitos relatos jornalísticos do século XIX descrevem envenenamentos acidentais com produtos que continham verde esmeralda.
P: Conte-nos mais sobre os riscos para a saúde associados à exposição ao arsênico desses livros.
- Consultamos higienistas industriais e toxicologistas, mas quero enfatizar que não sou médica, portanto, minha compreensão do arsênico como veneno é de uma pessoa não especializada. O maior risco dos livros que contêm arsênico é que o arsênico do pigmento seja transferido para as mãos e, em seguida, ingerido acidentalmente ao tocar o rosto, comer/beber etc. Na conservação de obras de arte, usamos a palavra ‘frágil’ para nos referirmos a um material que se desintegra e pode facilmente se desprender e transferir para a mão. O pigmento verde esmeralda é muito frágil. Se você tocá-lo, não verá que a cor verde se transfere para as mãos, mas quantidades significativas de arsênico ainda chegam à sua pele. É improvável ingerir arsênico suficiente dessa forma para ser letal, mas é possível ingerir arsênico suficiente para causar efeitos negativos na saúde, como náuseas, neuropatia e danos aos órgãos. Sabe-se que o verde esmeralda causa lesões cutâneas com exposição repetida e também é cancerígeno.
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R: O Projeto Livro Envenenado é uma iniciativa que visa promover a leitura e a literatura de forma acessível e inclusiva. Seu principal objetivo é disponibilizar livros gratuitos e de qualidade para todas as pessoas, independentemente de sua situação socioeconômica. Através de parcerias com editoras, autores e doações, o projeto busca distribuir livros físicos e digitais para escolas, bibliotecas, comunidades carentes e outras instituições. Além disso, também realiza atividades de incentivo à leitura, como palestras, oficinas e eventos literários. O objetivo final é democratizar o acesso à leitura e contribuir para a formação de leitores conscientes e críticos.
- O Projeto Livro Envenenado rastreia e estuda o uso de metais pesados em encadernações europeias e norte-americanas do século XIX produzidas em série. A maioria desses metais pesados está presente na forma de pigmentos de cores brilhantes nos tecidos e papéis utilizados para fazer livros dessa época. Encontramos chumbo, cromo e mercúrio nesses livros, mas o elemento que mais nos interessa rastrear é o arsênico, pois é de longe o mais tóxico. Criamos um site e um banco de dados de acesso público para rastrear as encadernações do século XIX em que a presença do pigmento verde esmeralda à base de arsênico foi confirmada. À medida que mais livros são identificados, os adicionamos à lista. Começamos com 38 livros arsenicais conhecidos e esse número aumentou para 245.
R: Quais repercussões esse descobrimento teve no campo da conservação de livros e estudos históricos?
- Gosto de pensar que nossa pesquisa tem incentivado nossos colegas que trabalham com livros históricos a serem mais conscientes dos riscos potenciais para a saúde e segurança. Quem poderia pensar que manipular livros pode ser perigoso para a saúde? O maior risco desses livros que contêm arsênico é simplesmente não saber que o risco está lá. Uma vez confirmado que um livro contém arsênico, medidas bastante simples podem ser tomadas para garantir a segurança pessoal. Recomendamos embalar um livro com arsênico em um saco plástico com fecho zip para conter qualquer possível liberação de pigmento. Também recomendamos o uso de luvas de nitrilo ao manipular o livro e evitar comer, beber, fumar ou tocar o rosto até ter a oportunidade de lavar as mãos após a manipulação. Também espero que o projeto tenha chamado a atenção para o valor das encadernações do século XIX de uma nova maneira. Esses livros nem sempre foram apreciados como objetos, pois não são tão antigos nem tão raros como muitos outros tipos de encadernações. Espero que nossa pesquisa demonstre que os livros podem ser especiais não apenas por seus textos, mas também porque contêm evidências físicas do passado. O pigmento de arsênico desses livros contribui tangivelmente para nossa compreensão da história manufatureira e econômica da Inglaterra, bem como para o desenvolvimento do comércio de livros.
P: O que reserva o futuro para o seu projeto e quais são os seus planos?
- Continuamos avançando com nossa pesquisa histórica e científica para entender melhor esses livros e seu legado nas coleções atuais. Como um de nossos principais objetivos é a divulgação para o bem público, estamos construindo um site mais robusto para o Projeto Livros Envenenados enquanto continuamos a expandir o Banco de Dados de Livros com Arsênico. Este projeto nos colocou em contato com colegas de todo o mundo que compartilham nosso interesse pelo patrimônio perigoso em bibliotecas e arquivos, então Rosie Grayburn e eu também criamos o Grupo de Trabalho de Bibliotoxicologia (BibTox). BibTox é um grupo internacional de conservadores, cientistas, bibliotecários, historiadores do livro e profissionais de saúde e segurança. Os objetivos do nosso grupo são desenvolver métodos confiáveis para identificar coleções de bibliotecas e arquivos potencialmente tóxicas (seja porque foram fabricadas com componentes tóxicos ou se tornaram tóxicas posteriormente devido ao uso de tratamentos como pesticidas); desenvolver estratégias de gestão mais seguras para essas coleções; e compartilhar informações confiáveis publicamente. Estou ansiosa para ver o que esse grupo interdisciplinar descobrirá e alcançará nos próximos anos.
EM NÚMEROS
O Projeto Livro Envenenado descobriu 245 encadernações do século XIX que contêm pigmento verde esmeralda à base de arsênico.
É provável que ainda existam milhares desses livros envenenados no mundo, inclusive em bibliotecas, sebos e residências.