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Ensaio sobre o destino dos dedos

Todos conhecem, mesmo que seja por alto, a lei da reciprocidade. Ela apresenta enunciados diferentes e perpassa diversas doutrinas religiosas; está no Oriente e no Ocidente; valeu no passado, vale hoje e não creio que esteja próxima de ser revogada. Seus principais pilares, aqui apresentados com as minhas palavras em adaptação livre, proclamam que você colherá aquilo que planta e, também, receberá dos outros o que para eles deseja. Enfim, é de uma justiça atroz – e combinar estas duas palavras deveria servir de alerta.

Bom, e onde estaria a atrocidade da justa lei? No fato de ela ser aplicada apenas para si. Uma lei absolutamente personalista, inescapável e meritocrática. Ela é em tudo reativa; suas consequências estão atreladas aos nossos desejos, pensamentos e ações. Quando compreendemos a natureza da reciprocidade, tornamo-nos melhores por interesse e, sim, sentir-se bem e prosperar é um interesse bastante legítimo. Tipo a máxima do malandro que fica honesto para se dar bem, isto é, por pura malandragem. O problema é que não anda fácil ser Ghandi hoje em dia.

Por exemplo, hoje mesmo no trânsito. Estamos calmos, apesar da avenida engarrafada e dos buracos no asfalto. Daí um – ou uma – animal calca o dedo na buzina com força e insistência mesmo sabendo que esta atitude não fará a fila andar. Eu escrevi e você leu a crônica no Metro Jornal e deseja obedecer a lei da reciprocidade e pensar o bem a qualquer custo e ter compaixão dessa alma atormentada e imaginar que os decibéis são consequência de algum sofrimento ou trauma. Só que não dá, não dá. A única ideia factível é indagar em pensamento ou aos berros: por que não enfia o dedo no próprio nariz até sangrar? (Digo nariz, mas se pode ser mais contundente.) E, fazendo isso, alimentamos a coluna do ódio no balanço urbano.

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O exemplo banal acima serve apenas para fins de ilustração – estamos expostos a coisas mais deletérias, claro. A questão é: como escapar desta e de outras ciladas, se nossa animosidade pode ser de ordem cósmica, logo, ocasionada por reciprocidade? Suponho que sendo gentil e altruísta o máximo de tempo possível com quem não nos agride. Isso foi o que
o buzinador não fez, pois, ao que se saiba, 99% das pessoas que escutaram o barulho são inocentes – sem falar que o causador da retenção pode estar legitimado por uma contingência que o absolve. Resista, enfim, à tentação de buzinar também. Nem que para isso precise enfiar, fundo, o dedo na consciência. A paz agradece.

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