“A Cachorro Grande foi uma banda de estrada”, conta Beto Bruno ao definir o legado do grupo que, por 20 anos, serviu ao rock nacional. Neste mês, o quinteto gaúcho encerra as atividades com as últimas apresentações de sua turnê de despedida. Amanhã, será a vez de São Paulo, com show às 23h, no Cine Joia (pça. Carlos Gomes, 82, Liberdade; R$ 60).
Quando o fim da Cachorro foi anunciado, em dezembro do ano passado, muito se falava sobre o desgaste entre os membros, mas agora o vocalista entende que as brigas não eram um grande obstáculo. “Ninguém estava satisfeito com a música. Os outros problemas poderiam ser driblados se a música tivesse do jeito que a gente queria”, explica Beto Bruno.
O desentendimento musical veio com “Electromod” (2016), último álbum de estúdio do quinteto, que dividiu não só os fãs, como a própria banda. “Eu não fiquei presente em quase nenhum momento das gravações. Eu nem vi o Gross (guitarrista) no estúdio”, confessa. “No fim, é um álbum que eu não ouço.”
Para terminar em alta, a Cachorro Grande lançou o álbum ao vivo “Clássicos” (2018), com as principais canções da carreira e que baseia o setlist da turnê final. Fora o “Electromod”, a banda possui outros sete álbuns de estúdio, além de um extenso currículo abrindo grandes shows internacionais de artistas como Oasis, Aerosmith e The Rolling Stones, uma das maiores inspirações do grupo. “Foi mais do que um sonho realizado, porque nem em sonho eu imaginei que iria abrir um show dos Stones.”
Os cinco integrantes da Cachorro Grande já estão com os planos encaminhados para depois do fim. Marcelo Gross, o baixista Rodolfo Krieger e Beto Bruno vão investir em carreiras solo – o último terá o tecladista Pedro Pelotas na banda de apoio. De volta para Porto Alegre, o baterista Gabriel Azambuja, que não acompanha a turnê de despedida, deve se dedicar ao seu estúdio.
Discografia da Cachorro Grande
Com a palavra, Beto Bruno
Leia destaques da entrevista com o vocalista Beto Bruno e, abaixo, a discografia da banda comentada por Gross.
Por que acabar com a Cachorro Grande?
«Vários motivos. Toda a banda de rock tem seus altos e baixos, ainda mais fazendo rock no Brasil. Esses problemas a gente sempre dava um jeito de passar por cima e a música sempre foi a coisa mais importante para nós, o que nos uniu. E teve um momento em que eu senti que ninguém estava satisfeito com a música, então não teria mais motivos para nós estarmos juntos. E esse foi o principal motivo.»
Trilogia inacabada
«[Depois de ‘Costa do Marfim’ e ‘Electromod’] acabou saindo um ao vivo, no lugar do terceiro, justamente por eu não querer seguir nesse caminho. No Costa do Marfim todos saíram muito satisfeitos, é o meu disco favorito, eu morro de orgulho. Ali a gente estava no auge criativo e a gente pensou ‘legal, vamos estender essa fase’. Mas no segundo disco não teve esse clima, parecia que a gente entrou com o jogo ganho.»
Gravações do «Electromod»
«A mágica não rolou. Eu me desentendi com isso, não me senti bem e não fiquei presente quase dentro das gravações. Só fui gravar as vozes e fiz as letras junto, algumas são minhas. Eu produzi as demos nas casas do Rodolfo e do Gross e estava muito bom, estava super feliz. Quando chegou no estúdio, eu já estava me desentendendo, o Gabriel gravou as baterias de Porto Alegre e o Gross já estava completamente distante também. Eu não vi o Gross nessas gravações. Então aconteceu que o disco ficou muito na mão do Edu K e ele não conseguiu fazer a mágica sozinho. E o clima ruim da gravação passou para o álbum.»
Turnê de despedida
«A melhor ideia do mundo foi essa turnê de despedida. [A banda] Estava para acabar abruptamente, eu já tinha uma nota pronta. Era no final do ano passado, eu estava bem sozinho e me veio a ideia: ‘Porra, foram 20 anos de festa, tirando uns dois anos meio conturbados. É uma história muito bonita, de superação do guri do interior que vai para a capital toca em uma banda de rock e depois a banda se muda para a maior capital do país com aquele sonho. Aconteceu tanta coisa maravilhosa que eu não ia deixar acabar no escuro.»
A cidade de São Paulo
«São Paulo é mais do que especial para nós. As pessoas até hoje falam que a ‘Cachorro Grande é uma das melhores bandas gaúchas’, mas a gente ficou três anos em Porto Alegre e os outros 17 anos em São Paulo. A gente chegou aqui no primeiro disco tocando para 20 pessoas, quando voltamos tinham 200 e na quarta vez já tinham mil pessoas. Tudo isso sem nem ter o segundo álbum. Fomos recebidos de uma maneira tão maravilhosa que a gente entendeu que era a nossa cidade. Estou há 17 anos pagando IPTU aqui. [risos]»
O perrengue do 2º álbum
«O primeiro álbum foi gravado em 2001 e o segundo logo depois, em 2002, mas só conseguimos lançar ele em 2004. Nesses dois anos e meio, a banda quase acabou. O sonho estava indo embora, a banda não tinha gravadora interessada no segundo disco (‘As Próximas Horas Serão Muito Boas’). Recebemos vários ‘nãos’, disseram que estava muito cru. A gente gravou tudo ao vivo em um rolo de fita, que na época era uma loucura mas hoje é considerado ‘cool’. Até que apareceu o Lobão, que tinha uma revista que lançava todo o mês um disco nas bancas de revista do país inteiro. A gente contou a história pra ele e ele pirou e lançou. O ‘Próximas Horas’ é hoje considerado um dos principais discos da história do rock independente brasileiro.»
The Rolling Stones
«Antes de montar a banda, antes de imaginar que eu fosse músico eu já era fã dos Stones, por causa da minha família, eu herdei uma coleção absurda. Eles são culpados de eu estar em cima de um palco. O meu sonho era simplesmente assistir eles, e todas as vezes que eles vieram pro Brasil, eu fui. Mas abrir o show deles é uma coisa surreal, absurda e para minha vida, não só para a minha carreira. Na minha vida, tem o dia em que nasceu minha filha, o dia que eu conheci minha mulher e o dia em que eu abri o show dos Stones. Estou olhando para a foto com eles, que a gente não pode divulgar. Mas assim que a banda acabar eu vou divulgar e foda-se!»
O legado
«A Cachorro Grande foi uma banda de estrada. Não conseguimos registrar nada na estrada, então o legado que tem aí são os 1o álbuns do que pra mim é uma discografia fantástica. Eu sou fã da Cachorro Grande. Não sinto necessidade que falem que foi uma grande banda, que foi uma banda das mais importantes da sua geração. Eu só quero que falem: ‘estão aí esses cinco caras que gostavam do que estavam fazendo, se divertiram pra caralho, divertiram milhares de pessoas nesses 20 anos e foram verdadeiros.’ E foi tão verdadeiro, que quando o som não estava agradando mais a banda acabou.»
Discografia comentada, por Marcelo Gross
1 . «Cachorro Grande» (2001)
«Álbum de estreia foi um momento muito especial, músicas como ‘Lunático’, ‘Sexperienced’ e ‘Debaixo do meu Chapéu’ rodaram muito nas rádios e seus clipes foram nosso cartão de visitas para a MTV nos apresentar para o resto do Brasil.»
2. «As Próximas Horas Serão Muito Boas» (2004)
«O disco foi gravado ‘ao vivo’ no estúdio em fita rolo e foi recusado pela gravadora na época por ser ‘muito doido’. Quem salvou a pátria foi o amigo Lobão, que lançou o disco na sua revista ‘OutraCoisa’ nas bancas de todo o Brasil. Foi nossa primeira distribuição nacional, fazendo com que a banda tocasse nos festivais do Brasil afora e abriu os olhos das gravadoras do centro do país. Desse disco se destacaram ‘Hey, Amigo’ e ‘Que Loucura!’, cujos clipes também concorreram na premiação do VMB da época.»
3. «Pista Livre» (2005)
«O ponto de virada da banda: fomos contratados por uma gravadora nacional, gravamos num estúdio de primeira, e nos mudamos para São Paulo. Nesse disco, a banda se estabeleceu como uma atração nacional e os clipes das musicas ‘Você Não Sabe o Que Perdeu’, ‘Desentoa’, ‘Bom Brasileiro’ e ‘Sinceramente’ ficaram entre os clipes mais tocados nas paradas de sucesso da MTV.»
4. «Acústico MTV: Bandas Gaúchas» (2005)
«Acústico coletivo com bandas conterrâneas, esse disco/DVD saiu quase simultaneamente junto com o álbum ‘Pista Livre’, sublinhando uma fase bem popular da banda. O destaque ficou com a versão da música ‘Dia Perfeito’ que contou com a participação mais que especial do Paulo Miklos (ex-Titãs).»
5. «Todos os Tempos» (2007)
«Na esteira do bom momento da banda, o disco foi muito bem recebido pelo público, iniciando um flerte da banda com o britpop. Desse disco se destacaram ‘Você Me Faz Continuar’, ‘Roda Gigante’ e ‘Conflitos Existenciais’.»
6. «Cinema» (2009)
«Disco gravado em Porto Alegre – novamente num sistema totalmente analógico em fitas rolo. Foi o primeiro lançamento que ganhou também edição em vinil e nesse álbum a gente flerta com o rock dos anos 1970. Se destacaram ‘Dance Agora’ e ‘Por Onde Vou’.»
7. «Baixo Augusta» (2011)
«Esse disco teve a sua gravação transmitida ao vivo pela gravadora Trama Virtual. Se destacam ‘Difícil de Segurar’ e ‘Mundo Diferente’.»
8. «Costa do Marfim» (2014)
«Disco que marca outro ponto de virada na discografia da banda. Com a produção de Edu K, o álbum flerta com a mistura de rock com música eletrônica e psicodelismo moderno – influenciado pelas banda inglesas de Manchester da virada dos anos 1980 para os anos 1990, como Happy Mondays, Primal Scream e Stone Roses.
A edição especial em vinil foi fabricada na República Tcheca e ficou presa na Receita Federal durante 2 anos por burocracias, porém ganhou uma edição especial do programa O Som do Vinil, que é apresentado por Charles Gavin (ex-Titãs) sobre os discos históricos brasileiros. Desse disco se destacaram ‘Como Era Bom’ e ‘O Que Vai Ser’.»
9. «Eletrocmod» (2016)
«Continuando o que seria uma trilogia (que acabou não acontecendo) o disco vai mais a fundo no crossover de música eletrônica com Rock indo por viés mais industrial e preto e branco. Desse disco se destacaram ‘Tarântula’ e ‘Eletrocmod’.»
10. «Clássicos» (2018)
«Primeiro registro ao vivo da banda, contém as músicas mais marcantes da carreira e a performance no palco da banda que acabava de abrir o show dos Rolling Stones. Um belo e justo epitáfio.»