Houve um tempo em que a Venezuela era tão rica que atraía as atenções de todo o mundo.
Durante quase 30 anos, entre as décadas de 50 e 80, os salários e a renda per capita dos venezuelanos eram os mais altos da América Latina, como lembram analistas, ex-imigrantes do país e moradores de Caracas entrevistados pela BBC News Brasil.
Era uma época de crescimento constante e estabilidade econômica, bem diferente do cenário atual.
Hoje, a Venezuela vive uma profunda crise econômica, política e social. Segundo dados da ONU, 3 milhões de venezuelanos já deixaram o país.
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Na década de 70, por exemplo, enquanto o mundo passava por um aperto devido à crise do petróleo, a Venezuela era inundada por dólares.
Afinal, a restrição da oferta da matéria-prima catapultou seu preço no mercado internacional.
Essa riqueza levou o país a ser batizado de "Venezuela Saudita", em alusão à Arábia Saudita.
Isso também se refletiu no estilo de vida. O argentino Miguel Ángel Diez, que morou em Caracas entre 1977 e 1982, lembra que a capital venezuelana era popularmente chamada de "a sucursal do céu".
Aquela Venezuela próspera e dos ‘petrodólares’ (dólares obtidos com a exportação de petróleo) atraiu intelectuais, psicanalistas, psicólogos, entre outros profissionais, além de imigrantes latino-americanos e europeus, que buscavam oportunidades econômicas no país democrático.
Em contraste com o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Chile, que viviam ditaduras militares, a Venezuela era governada por presidentes eleitos pelo voto popular. O país já havia passado por golpes de Estado e ditaduras.
Durante vários anos, como lembrou o economista e analista político venezuelano Luis Vicente León, da empresa de pesquisa e análises Datanalisis, a Venezuela investiu a renda do petróleo em infraestrutura, na construção de escolas e de universidades e na distribuição de bolsas de estudo no exterior para os venezuelanos.
‘Herança’
Para ele, o problema, porém, foi que o país vinha "administrando bem" essa riqueza desde os anos 1950, mas "se deslumbrou e errou no excesso de gastos" com os preços altos do petróleo dos anos 1970. Foi uma bolha que acabou estourando, diz.
"Era dinheiro demais e em vez de ter sido investido em mais medidas de longo prazo, foi gasto sem planejamento. Quando o preço do petróleo caiu, no inicio dos anos 1980, e o boom dos anos 1970 acabou, o país tinha dívidas. Foi como receber uma herança e não saber administrá-la", lembra León.
Sem a renda do petróleo, sua principal mercadoria, e com desorganização econômica, a Venezuela passou a registrar alta da inflação e queda no Produto Interno Bruto (PIB).
Esse revés, contudo, não afetou tanto os segmentos mais ricos da população, que continuavam a desfrutar de uma vida com mais privilégios em relação a seus vizinhos sul-americanos, como lembram os entrevistados pela reportagem da BBC News Brasil.
‘Pêndulo’
Especialistas venezuelanos costumam dizer que o petróleo é o bem e o mal do país.
Isso porque a Venezuela possui uma das maiores reservas comprovadas da matéria-prima no mundo, mas dele é "dependente demais", ressalvam. Sucessivos governos deixaram de desenvolver a indústria local e privilegiaram um modelo de importação de bens de consumo o que acabou por acentuar a dependência.
O petróleo é o principal produto exportado pela Venezuela, que importa grande parte do que consome em outros setores, incluindo alimentos. Na prática, quando o preço do petróleo cai, o país arrecada menos, dependendo da sua capacidade de produção.
Nos anos 1980 e 1990, a Venezuela registrou episódios marcantes em sua história como o chamado ‘Caracazo’, que foi uma revolta nas ruas contra medidas econômicas do então presidente Carlos Andrés Pérez (1974-1979 e 1989-1993); o golpe de Estado liderado por Hugo Chávez; períodos de expansão, na era do eleito Chávez; crise econômica e a hiperinflação dos últimos anos.
Uísque
Mas na época da bonança, principalmente na metade dos anos 1970, morar na Venezuela era sinônimo de segurança política, oportunidade de trabalho e ascensão econômica, como lembrou o jornalista Miguel Ángel Diez, atualmente diretor da revista Mercado, de Buenos Aires.
Ele contou que chegou à cidade com apenas US$ 800 e que conseguiu casa imediatamente. Na sequência, sua mulher e seus dois filhos pequenos se mudaram para Caracas, onde também puderam usufruir das benesses da vida no país.
"Havia uma demanda enorme por mão de obra qualificada e a Venezuela, além de próspera, era generosa com os imigrantes", lembra. Diez, junto com o ex-senador argentino Rodolfo Terragno e com o escritor Tomás Eloy Martínez fundaram, naqueles chamados anos dourados, o periódico ‘El Diário de Caracas’, que ganhou prestígio regional.
Tomás Eloy Martínez (1934-2010) ficou conhecido no Brasil pelo livro Santa Evita, sobre a ex-primeira-dama argentina Eva Perón, e costumava lembrar com nostalgia de sua vida na Venezuela, dizendo que era um país "que buscava o futuro."
Caracas, contou Diez, vivia com restaurantes e cinemas cheios e desconhecia a inflação – que é hoje a mais alta da América Latina.
Na época do boom do petróleo, lembra, Caracas já registrava engarrafamentos diários, porque a maioria das pessoas tinha carro e o combustível, com a farta produção petrolífera, era ‘regalado’ (praticamente de graça).
"Para nós, tudo chamava a atenção. Era comum, por exemplo, comprar bebida importada, uísque e champanhe, nos supermercados, quando aqui na Argentina isso era inimaginável", conta.
O nível de exigência dos venezuelanos também era alto, acrescenta.
"Uma vez dei uma garrafa de uísque red label, caro, para um conhecido e ele me explicou, que para um venezuelano, gentileza era presentear um black label. Ou seja, que era ainda mais caro. Fiquei surpreso. Eram luxos de consumo que não tínhamos em Buenos Aires", afirmou.
A fartura era tal, disse, que festas "para 100 pessoas chegavam a ter 100 garrafas de uísque importado".
Viagens
Em conversa com a BBC News Brasil, o especialista em comunicação corporativa Federico Olioso, de 56 anos, que mora em Caracas, diz que era comum para a classe média realizar várias viagens de lazer ao exterior.
"Sou de uma família de classe média. E fazíamos duas viagens internacionais por ano. Havia bonança e não só de dinheiro, mas também com a atenção que se dava ao setor de educação e à qualidade de vida", diz.
Ele também lembra como Caracas era animada, com restaurantes, cinemas, praças e comércio cheios, além de festivais de teatro. E que era "normal" planejar o futuro, o que hoje ficou mais difícil.
"Hoje, o cenário é muito diferente e muito triste. De noite, tudo fechado, ruas vazias e sem luz. Não há mais aquela festa de antes. E ficou muito complicado planejar, pensar no longo prazo", lamenta.
Olioso é filho de um imigrante italiano e de uma venezuelana, neto de um colombiano e de uma portuguesa.
Famílias como a dele retratam o histórico de imigração na Venezuela. "Fomos durante muitos anos um país que causava inveja na América Latina. Hoje, é totalmente o contrário", disse Olioso.
Ele acha que "nunca mais" voltará a viver no seu país como naqueles tempos. "Eu e meus amigos saíamos às ruas sem medo da violência. Isso não existe mais", disse ele.
Olioso contou que é um dos poucos da sua família que continua em Caracas. Os sobrinhos e os amigos moram hoje nos Estados Unidos e na Europa. "Meus sobrinhos, que são jovens, não viveram a Venezuela que eu vivi", disse.
Rio de Janeiro
A venezuelana Patricia Aloy, que é filha de um brasileiro e de uma cubana, conta que viajava três vezes por ano ao Rio de Janeiro.
"Meu pai era publicitário e minha mãe professora e costumávamos viajar três vezes por ano ao Rio de Janeiro para ver a família. Talvez este fosse nosso maior luxo", diz ela à BBC News Brasil.
Designer de formação e apresentadora do programa Venezuela Sinfónica, transmitido pela internet, Aloy, de 44 anos, era criança quando a Venezuela "esbanjou e não cuidou das contas públicas", na visão de analistas.
"Íamos a bons colégios e não era loucura pagar por isso. Podíamos comprar café, farinha, açúcar normalmente nos supermercados. Podíamos planejar o orçamento familiar. Podíamos pegar um crédito num banco. Nada disso é luxo. É sinônimo de vida normal. Mas infelizmente não na Venezuela dos dias de hoje", diz Aloy.
Casada com o designer uruguaio Eduardo Maurin, que chegou a Caracas ainda criança com a família em 1974, ela disse que sua infância, adolescência e idade adulta foram marcadas por uma vida que hoje é "normal" em outros países da região.
"Agora, aqui, o dinheiro é curto demais e nossa vida é pensar como e onde comprar a comida, como tentar dar um mínimo de bem-estar aos nossos filhos. E também nos preocupamos muito com a violência", diz Aloy.
O argentino Diez lembra que, nos anos 1970, as casas de Caracas já tinham porta metálica, por segurança, e que ouvia notícias sobre assaltos à mão armada e furtos.
"Mas jamais vi um caso de violência. Era tranquilo andar nas ruas e ir aos restaurantes à noite era parte do nosso cotidiano", diz.
Nos últimos tempos, contudo, num caminho contrário ao que trilhou, Diez tem recebido venezuelanos em Buenos Aires. Tenta ajudá-los a conseguir empregos em diferentes profissões, de eletricistas a médicos. Também contratou venezuelanos na revista que comanda atualmente.
"Tento ajudar o máximo que posso. Fui muito feliz na Venezuela. Mas hoje é triste ver que jovens venezuelanos, em torno dos 25 anos, dizendo que não querem mais voltar, que não veem futuro no próprio país, no país que acolheu a mim e a milhares de outras pessoas do Cone Sul, de Portugal, da Espanha e de tantos países", diz Diez.
Aquela Caracas, "sucursal do céu", conclui, não existe mais.
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